Leituras de 2021

Um dos projetos mais legais que fiz esse ano foi o “Bate-bola literário”, a sequência de resenhas a quatro mãos com o Fernando Sousa Andrade. Fomos atropelados pela rotina e, no momento, sacudindo a poeira pra retomar em 2022 com mais resenhas.

Em abril defendi minha tese de doutorado e, logo depois, lancei o meu segundo livro de contos, “Insônia Tropical”, que saiu pela Patuá.

Tirei alguns meses de descanso, como uma entressafra produtiva, e finalmente tive tempo de retomar algumas leituras que vinha adiando. Assim, minha lista de leituras do ano virou uma mistura que vai desde contos de novos autores brasileiros até estudos sobre cosmovisões indígenas.

No gênero contos, destaco “O que devíamos ter feito” (Whisner Fraga), “Pessoas promíscuas de águas e pedras” (Thais Lancman), “Velhos” (Alê Motta) e “A janela é uma transversalidade do corpo” (Fernando Andrade). Doramar também é sensacional, e não posso deixar de recomendar “Aqui até o céu escreve ficção” (Jozias Benedicto) e “Visão noturna” (Tobias Carvalho).

Em romances, a minha bússola aponta para nordeste indicando “O som do rugido da onça” (Micheliny Verunschk), “Inhamuns” (Kah Dantas) e “Fiados na esquina do céu com o inferno” (Eury Donavio). Entre os internacionais, ainda estou impactado com “Temporada de furacões” (Fernanda Melchor).

Crônica nem sempre funciona bem em livro, mas “A teoria da felicidade” (Katia Borges) prende o leitor até o fim e as crônicas-ensaios de “Guia de sobrevivência do exilado no próprio país” (Alexandre Meira) são essenciais no Brasil de hoje. A poesia não é um gênero que leio com frequência, mas me diverti bastante com os atravessamentos literários de “Interstícios” (Fernando Andrade).

Acho injusto fazer um ranking com tantos livros bons, segue a lista na ordem que me lembrei de ter lido. Não pretendo fazer nenhuma lista de melhores livros nem colocar todos os que li este ano, apenas um passeio pelo que li de interessante durante essa dobra de tempo pandêmico que vivemos em 2021.

Livros que comentei no bate-bola literário:
1. Testado em animais  – Rafael Zoehler
2. Diário do aço – Betzaida Mata
3. Canto algum – Flávia Reis
4. Desumanizados – Nelio Silzantov
5. Guia de sobrevivência do exilado no próprio país  – Alexandre Meira
6. Velhos – Alê Motta
7. O filho de Osum – Decio Zylberstajn
8. O que devíamos ter feito – Whisner Fraga
9. A teoria da felicidade  – Katia Borges
10. Aqui até o céu escreve ficção- Jozias Benedicto
11. Fronteira eterna – Dantas Guerra
12. Um estudo em branco e preto – Mafra Carbonieri
13. Pessoas promíscuas de águas e pedras – Thais Lancman
14. A flor da pele – Krishnamurti Goes dos Santos
15. Verás que é tudo mentira – Mário Baggio


Outros livros de literatura:
16. São Bernardo  – Graciliano Ramos
17. O som do rugido da onça – Micheliny Verunschk
18. Visão noturna – Tobias Carvalho
19. Fiados na esquina do céu com o inferno- Eury Donavio
20. Interstícios – Fernando Andrade
21. A janela é uma transversalidade do corpo – Fernando Andrade
22. Inhamuns – Kah Dantas
23. Diários – Franz Kafka
24. Doramar ou a odisseia – Itamar Vieira Junior
25. Sete anos bons – Etgar Keret
26. Temporada de furacões- Fernanda Melchor
27. Catch-22 – Joseph Heller
(Isto pra não contar os originais de dois amigos que, se tudo der certo, estarão lançando em 2022 ou 23)

Livros sobre literatura e arte:
28. Guimarães Rosa: a ficção à beira do nada – Jacques Rancière
29. A psicanálise como ela é  – Rafael Costa
30. Romance: uma história – Julián Fuks
31. Teoria do romance – György Lukács
32. Fábulas da ciência – Guilherme Preger
33. Verdade Tropical – Caetano Veloso

Para entender o Brasil:
34. A República das milícias – Bruno Paes Manso
35. Eles em nós – Idelber Avelar
36. Guerra cultural e retórica do ódio – João Cezar de Castro Rocha
37. Fascismo à brasileira – Pedro Doria
38. O Brasil no espectro de uma guerra híbrida – Piero Leirner

Para entender o mundo em rede:
39. Humilhados – Jon Ronson
40. Existe democracia sem verdade factual? – Eugênio Bucci
40. Superindústria do imaginário – Eugênio Bucci
41. Políticas da imagem – Giselle Beiguelman
42. Onde aterrar? – Bruno Latour

Livros sobre outras visões do mundo:
43. O mundo não está à venda – Ailton Krenak
44. A queda do céu – Davi Kopenawa
45. A inconstância da alma selvagem – Eduardo Viveiros de Castro
46. A serpente cósmica – Jeremy Narby
47. Psiconautas – Marcelo Leite
48. O oráculo da noite – Sidarta Ribeiro
49. Zen e a arte de manutenção de motocicletas – Robert Pirsig

Releituras:
50. LTI, a linguagem do Terceiro Reich – Vitor Klemperer
51. A personalidade autoritária- Adorno et al.
52. Vigiar e punir – Foucault
53. Microfísica do poder – Foucault
54. Culturas híbridas – Nestor Garcia Canclini
55. Sobre arte, técnica, linguagem e política – Walter Benjamin
56. Haxixe – Walter Benjamin
57. O mundo codificado – Vilém Flusser

Bom 2022 para todos!

Verser

(Conto que levei para o Clube da Leitura em 09/11/2021)


Olá, sou Jota Morais, CEO da Verser, a primeira startup nacional exclusivamente dedicada à poesia, e estamos aqui para apresentar os resultados desta empresa promissora que almeja se tornar um unicórnio. Pretendemos nos tornar a maior plataforma de contratação de poesia do mundo. Sabemos o quanto esta é uma tarefa desafiadora, mas onde outros veem dificuldades, nós procuramos tangibilizar soluções.

O diferencial da Verser é que para nós a experiência do cliente está em primeiro lugar. Os poetas cadastrados na plataforma Verser são ranqueados pelo nosso algoritmo de acordo com avançadas métricas de qualidade, levando em conta as avaliações dos usuários parametrizadas de acordo com o público-alvo por meio de recursos inovadores de inteligência artificial com learning machines capazes de medir o potencial semiótico versejante de cada poeta com taxa de precisão acima dos 90%. Com esta tecnologia, somos capazes de incrementar em 500% a produção de poetry experiences customizadas para cada usuário.

Temos preocupação com o meio ambiente. Em observância às normas ISO 26000 e aos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU, adotamos medidas para reduzir nossa pegada de carbono. O algoritmo Verser evita o desperdício de versos escritos ao reduzir a ocorrência de poetry experiences fora do padrão de qualidade, mitigando os impactos ambientais do descarte de poesia.

Visando tangibilizar nossos resultados no menor tempo disponível, utilizamos métodos ágeis para solucionar os gaps diagnosticados na nossa matriz SWOT.

Forças: somos uma empresa inovadora na solução que oferecemos para os usuários

Fraquezas: precisamos incrementar nosso potencial de atrair colaboradores poéticos alinhados com o padrão Verser de qualidade

Oportunidades: a demanda por poetry experiences vem crescendo exponencialmente com as redes sociais

Ameaças: alguns colaboradores poéticos resistentes a mudanças têm demonstrado comportamentos não aderentes às exigências de qualidade da plataforma Verser

Vamos agora aos nossos cases de sucesso. Rê Schifoni, usuária de São Paulo, 32 anos, diz que a experiência Verser mudou completamente sua vida. “Eu tinha preconceito contra os poetas. Achava que eram sujos, estranhos e difíceis de entender. Mas com a plataforma Verser eu me apaixonei pela poesia e não tenho mais falta de frases para postar nos Stories do meu Insta”. Já o usuário Lipe Radfahrer, 24 anos, de Porto Alegre, relata que o uso do Verser incrementou em 132% seu potencial de match nos aplicativos de relacionamento. “As gurias se amarram em poesia, e só na plataforma Verser encontro com facilidade os poemas que preciso para cada situação”. Guta Boaventura, 53 anos, de Recife: “Já tentei aprender mais sobre poesia, mas eu sempre me sentia agredida pela atitude dos poetas que viviam deprimidos e falando coisas sem sentido, como se não soubessem o que querem da vida. Aqui na Verser é o contrário, sempre encontro poesia de boa qualidade para manter meu foco positivo. Se eu quero, eu posso!”.

E você, o que está esperando para se tornar um usuário Verser? Aproveite as nossas ofertas imperdíveis de assinatura com cashback de 15% que você pode reinvestir na compra das exclusivas trufas de chocolate sustentável da Cacauastê.

Bate-bola literário: “Verás que é tudo mentira”, de Mário Baggio

Em tempos de fake news, o contista Mário Baggio nos presenteia com uma deliciosa coleção de histórias curtas sobre a mentira, o engodo, a lorota, a enganação, o papo furado, a cascata, o caô, a conversa fiada, a tapeação e todos os gêneros de narrativas com pernas curtas. “Verás que é tudo mentira” saiu pela editora Coralina.

José Petrola: Gostei muito do conto que descreve o encontro do narrador com uma senhora idosa, onde uma mentira bem intencionada é levada até as últimas consequências. O autor consegue nos surpreender e deixar em dúvida sobre o que é verdade ou mentira o tempo todo.

Fernando Sousa Andrade: Talvez aqui neste conto a síntese do livro se apresente, como o poder da ficção, se faz perante as desditas da vida, que sempre é mais amarga que a mais famigerada narrativa. A ficção não se revela pela mentira, mas sim pela imaginação de desafogar uma realidade sufocante demais.

Petrola: Sim, a ficção desnudando uma realidade que, esta sim, é mentirosa, usa a mentira e o fingimento para manter as convenções sociais, como o marido que esconde uma amante.

Fernando: Verdade, Mario traça muito bem estas pequenas hipocrisias sociais com um trabalho meticuloso na linguagem favorecendo os meios tons entre o que o corpo quer ( no caso do marido) e o que as convenções adulam para as verdades inconvenientes. 

Petrola: Há também uma recorrência de referências a narrativas religiosas. A mentira está presente no mundo desde que a serpente convenceu Eva a morder a maçã, ou será a mentira toda a narrativa que a religião institucional tenta inculcar no indivíduo?

Fernando: Mas acho que nos contos do Mário, a mentira extrapola a questão da fé, como mote de algo que precisa transcender a verdade, através do autoengano? Porque na narrativa ela cola( mentira) com o princípio da fantasia que não se adere ao princípio de realidade do Freud. A fantasia é escapista, portanto falsa e mentirosa.

Petrola: Sim, e é interessante que mesmo a mentira em algumas situações termina por revelar  verdades íntimas – como o protagonista de um dos contos que, ao fingir ter uma deficiência, descobre que realmente a tem.

Fernando: O contrato social está estabelecido sobre uma ficção. Ninguém suportaria falar a verdade nas relações sociais o tempo inteiro. talvez seja esta a leveza do livro, trazer os personagens para uma ideia antitrágica de que vida não pode ser séria demais enquanto drama do peso de viver sobre o conflito de interesses.

Petrola: Ou uma ideia de que talvez a gente não deva levar tão a sério as verdades impostas pela convivência social. Como diz o pai ao filho no primeiro conto, “a vida é uma coisa que nunca é do jeito que a gente quer”.

*

Trecho do livro:

Menino

“Quando eu era criança, brincar com meu avô era o que havia de mais gostoso, a melhor parte do dia e também a mais divertida. A gente costumava tirar o nariz um do outro e depois colocava de volta, ele falava Agora tô respirando de novo e eu ria. O “pedra, papel, tesoura” decidia quem iria tirar a mesa do almoço. O mais engraçado era quando chovia e a gente ficava atrás do vidro embaçado da janela brincando de “vejo uma coisa amarela, o que é?” ou “vejo uma coisa azul, onde tá?” Eu gargalhava quando
ele dizia Vejo uma calcinha vermelha, de qual moça? e minha mãe dava bronca nele por ensinar porcaria para um menino de cinco anos.
Em algumas brincadeiras meu avô escondia o rosto com as mãos, dizia Vovô sumiu e desaparecia da minha frente. Não era como os outros avós, que esses eu sabia que estavam só tapando a cara. O meu avô sumia de verdade mesmo. Então minha mãe tinha que sair pelo bairro feito louca, perguntando pra todo mundo se alguém tinha visto ele por aí. Quase sempre ele estava no bar do seu Quim, jogando porrinha com os outros velhos. Ou então a gente tinha que esperar ele voltar quando tivesse vontade. E ele sempre voltava com uma nova brincadeira, igual o dia em que inventou a estátua. Minha mãe trouxe ele do bar do seu Quim puxando ele pelo braço, e estava muito brava. Falava sem parar, que você me mata com essa mania de fugir, que
você já não tem idade pra se comportar como uma criança, que belo exemplo o seu neto vai ter, que eu tenho mais o que fazer na vida do que ficar te buscando em mesa de boteco, que um dia você vai me enlouquecer, olha só como estou tremendo, que um dia eu vou ter que tomar uma decisão azeda, mas não vai ter outro jeito. Ai meu avô piscava o olho pra mim e parava o corpo numa posição engraçada, o braço levantado, uma estátua. Eu fazia igual, e a gente ria. Minha mãe continuava falando com a estátua, e a estátua não respondia. Como era engraçado o meu avô!
Ontem minha mãe disse que teve que tomar a tal da decisão azeda, mas que tinha sido melhor pro meu avô. Ele iria morar em outro lugar, numa casa grande junto com outros avós. Eu não gostei. Não teria mais com quem brincar. Minha mãe não sabe fazer estátua, diz sempre que está ocupada. Eu fiquei uma semana inteira emburrado.
Quando chegou o dia, meu avô veio se despedir de mim, mas eu não queria saber de despedida. Fiz a estátua e não me mexi. Não quis dar o último beijo nele porque não queria que ele fosse embora. Ele chegou perto de mim e falou baixinho no meu ouvido Vejo um menino muito especial, que mora no meu coração, onde tá?, mas eu não falei nada e fechei os olhos. Só abri e olhei quando ele atravessou o jardinzinho da frente, levando o penico e o carrilhão debaixo do braço.”

Bate-bola literário: “À flor da pele”, de Krishnamurti Góes dos Anjos

No bate-bola desta semana, entra em campo a coletânea de contos que o escritor baiano lançou pela Laranja Original (que, apesar do nome, não parece estar envolvida em nenhum negócio mais suspeito do que edição de livros).

José Petrola: O que acho mais interessante nesse livro é a diversidade dos temas abordados nos contos – desde uma reconstrução de momentos históricos esquecidos como a Confederação do Equador até o drama contemporâneo dos refugiados na Europa.

Fernando Sousa Andrade: Acho que há na escrita do autor uma agudeza de percepção da história através da escrita. Não como um historiador que lê documentos históricos, mas um ficcionista que faz a tinta nova sobre o já experienciado, com um olhar crítico, mas fantasioso. 

Petrola: E também um olhar aguçado para personagens silenciadas, sempre apontando, ou subentendendo, as situações que poderiam ter sido e não foram.

Fernando: Sim, existe um movimento de falar por entre os interstícios da história, como se a versão fosse não a mais oficializada.  Como aqueles pergaminhos antigos que haviam uma escrita atrás da oficial.

Petrola: E várias das personagens parecem estar iludidas por uma falsa promessa, tal como os revolucionários pernambucanos contando com o apoio norte-americano que nunca existiu. Será este o fio que une tantos lugares e tempos diferentes?

Fernando: Talvez o papel do autor resenhista seja este mesmo, rascunhar lugares, tempos narrativos onde as lacunas obedecem não aos desgovernos, autocracias autoritárias,  mas sim, aos narrativistas ou arquivistas do passado, em busca de atualizações.

Petrola: E nesse percurso cheio de desafios, onde as personagens se envolvem com adversidades opressoras, sempre resiste um fio de esperança, ainda que uma esperança talvez inútil como a do paciente que espera semanas por uma cirurgia que nunca chegará a tempo.

*

Trecho do livro – conto “Enfermaria do Hospital Geral”:

“Assim espero. Preciso fazer uma ponte de safena, isto é, assim meu médico considera. Acho que dentro de alguns dias posso ter alta. Creio que a minha permanência aqui será rápida.
– Sei. Agora quanto a ser “rápido” é que eu não me fiaria muito. Não num pardieiro desses.
Procópio olhou-o com uma expressão de preocupação.
– Pelo que você está dizendo, o seu caso, não deve demorar mesmo.
– Assim espero.
– Vamos acreditar. Nossa sina nesse país é continuar acreditando, embora os fatos sempre neguem as esperanças. O problema do brasileiro é que esquece muito rapidamente os desatinos históricos cometidos. Quer um exemplo? Não vamos longe não, quem se lembra da inflação de 2.700% por volta de 1989 ou 1990? Quem se recorda dos planos econômicos, aqueles que começaram com a experimentação do Plano Cruzado, depois Cruzado II, Plano Bresser, Plano Verão, Plano Collor I e II, Plano Marcílio e finalmente o Plano Real? Quem se lembra? Oito planos econômicos e seis moedas? E isso tem o quê? Duzentos anos? Não, tem trìnta! E quanto à saúde, então? Quem se lembra do imposto da tal CPMF, aquela contribuição destinada ao custeio da saúde pública? Não deu em nada, e hoje a saúde pública no Brasil estáem coma profundo, respirando por aparelhos, entre a vida e a morte, uma lástima.
– E a palavra mais apropriada, uma lástima!
Por essas e outras é que me considero um homem pragmático. Pragmático até a medula, no pleno sentido de agir de acordo como as circunstâncias exigem. Isto é a vida! Não há de se ficar com choradeiras por aí, nem queixas, mas aceitar as coisas integralmente, com seus ônus e percalços, glórias e desilusões, e seguir adiante. Usemos a máscara universalmente aceita da conveniência.
Esta foi a recepção de boas-vindas que Procópio recebeu na enfermaria.

Bate-bola literário: “Um estudo em branco e preto”, de Mafra Carbonieri

Nesta rodada de bate-bolas literários, eu e o Fernando Andrade colocamos em campo o intrigante “Um estudo em branco e preto”, romance publicado pelo juiz Mafra Carbonieri (Ed. Reformatório, 2020). Logo de cara, este livro nos coloca de forma surpreendente nos pensamentos de um esquizofrênico que fantasia matar a mulher, e este mergulho na loucura vai até lugares inimagináveis.

José Petrola: Acho intrigante esse título, Estudo em branco e preto, justamente porque situações claras, preto no branco, são as que menos aparecem na obra.

Fernando Andrade: Avaliar um surto psicótico, uma esquizofrenia, entre tantas nuances dentro do espectro da personalidade, que parece muita ironia do autor inferir o título como esta marcação tão certa entre o branco e o preto.  

Petrola: E o autor é muito hábil ao jogar com as expectativas do leitor de modo a quebrar as distinções entre realidade e delírio. Há ações que se repetem, gerando expectativas que, em certo momento, são quebradas e nos dão um pouco da falta de chão que perturba os esquizofrênicos.

Fernando: Sim, a narrativa  carrega uma tensão que abala a própria convicção do leitor sobre noções de mal e bem, certo, errado, embora ache que de certa maneira há um certo julgamento do autor sobre seu personagem, você não acha? 

Petrola: Será? Penso de outra forma: a personagem que em outra situação seria taxada de louca, assassina, psicótica, aqui aparece sem pré-julgamentos, criando até uma empatia. É uma personagem culta, inteligente, provavelmente um professor, e as diversas personagens filosóficas que aparecem em seus delírios nos trazem provocações sobre as maneiras de conformar o real.

Fernando: E a religião e filosofia talvez respondam para o personagem uma série de questões sobre andar na borderline da condição humana. No fio da navalha. Uma forma de se autoanalisar sobre o refletor da explicação? da mente humana, será? 

Petrola: Respostas ou desafios? O que teriam a dizer Kant e Tolstoi frente aos dilemas do nosso protagonista? E ao mesmo tempo, como um pano de fundo, a esquizofrenia política do Brasil dos últimos anos.

Fernando: Neste jogo de rouba-esconde da fauna política, um profissional do Direito que cita filósofos enquanto comete seus atos criminosos parece até uma fina ironia do ser Mafra Carbonieri.

Petrola: Enfim, o que Mafra Carbonieri nos traz é um enigma e um desafio, que nos coloca em empatia com um tipo de personagem que normalmente aparece de forma estereotipada e marginal, e provoca reflexões sobre os limites da razão e do delírio humano.

*

Trecho do livro:

“Hoje eu mato a minha mulher. Como não sou núncio apostólico, diplomata de carreira ou político renascentista, logo descarto o veneno de rato. Não se observe nisso alguma afeição pelos roedores ou por Stalin. O padrasto do povo russo merecia morrer pelo gume de Raskolnikov, diante do Kremlin e do alarido raivoso, as bocas soprando na praça o vapor do alívio, sob as botas a neve escorregadia da revolta. Apenas não quero delegar a uma combinação química a consciência de minha culpa.

A covardia de transmitir a paixão a um ato do acaso, isso nunca. Nenhum veneno matará a minha mulher por mim. Prefiro o machado: o esquartejamento pelo machado: no gume o sangue antecipado da morte: no cabo a exigência da adesão e da força.

Passa de meia-noite e o filme escurece na TV. Agora um piano, a melodia muito leve gira com o letreiro e se propõe como enigma. Súbito ataque da propaganda. Embora mínimo o volume do aparelho, que enigma sobrevive aos publicitários? Ou recordação? Ou inquietação essencial? Já não sei quem sou. A sociedade contemporânea educa o homem para o anonimato. Mas pouco me importa sair da sombra pela fresta fluorescente do crime. Quero matar a minha mulher e perco na poltrona o controle remoto.

Não se mata a mulher no dia claro. É prexiso confiar na vinda cautelosa da madrugada e na luz latente que atua na fronteira das horas. Atrás de mim, o hall tem cinco portas. Um filme antigo começa a preencher a tela e a memória. Sem emoções inúteis, posso ouvir o ressonar de minha mulher nos intervalos de silêncio. Eu me levanto quase entorpecido, e vagarosamente me desloco até o hall, onde a iluminação da noite atravessa a grande vidraça e se reparte, imprecisa e vária, nos degraus da escada. Saio em busca do machado.

Bate-bola literário: “Fronteira eterna”, de Dantas Guerra

Para o bate-bola de agora, escolhemos “Fronteira eterna (e outros contos imaginados)”, de Dantas Guerra (Ed. Penalux). Brasileiro radicado em Portugal, o autor mistura linguagens e temas dos dois países e nos traz de volta à fantasia em tramas misteriosas.

Petrola: O livro é provocador ao narrar situações que estão na fronteira entre o real e o fantástico, sugerindo portais entre a realidade em que vivemos e outras dimensões misteriosas da existência.

Fernando: Sim, exatamente, mas há algo curioso e intrigante na relação entre uma conversa numa parte de Portugal entre amigos, e a conexão de fazer o discurso narrativo ser uma voz que precisa de ouvidos, tratados pelo som, aqui não da página, mas da leitura. Pois se trata de um livro sobre a leitura entre pessoas-personagens, que fazem da literatura uma espécie de mágica simbólica de relações.  

Petrola: Uma mágica que revela elementos ocultos da realidade – numa conversa despretensiosa entre amigos, os reflexos da tensão política do passado recente levam a um desfecho cruel. Porém esse desvelamento não se prende ao real, antes se reporta à dimensão do fantástico, da magia, do sobrenatural.

Andrade: O sobrenatural está ligado ao poder de uma sugestão de ler sempre no mistério das entrelinhas. a vida imita a arte – a arte é uma representação da vida?  O livro seria então o processo desta mimese?  

Petrola: Penso que não é uma mimese, mas antes uma fabulação. Nos contos, as personagens abrem portais: um fazendeiro é possuído pelo espírito do porco que matou, uma estudante explora uma misteriosa biblioteca subterrânea. São contos que trazem muito dos livros clássicos de aventura e mistério.

Andrade: Sim, a fabulação é o forte do livro até pela relação de contar que muitos personagens fazem até forma muito natural, há uma oralidade latente que vai até a própria raiz do livro como objeto semiótico de leitura. 

Petrola: Curioso como um mesmo livro pode ter várias interpretações, para mim esta oralidade não apareceu tanto. Vejo como uma marca forte do Dantas Guerra o uso de uma linguagem fora da oralidade, num registro entre o brasileiro e o europeu, e também remetendo muito aos clássicos dos livros de aventuras, como um aprendiz que se espelha nos livros de séculos passados para criar um estilo.

Fernando: Naquele conto da biblioteca é explícito esta oralidade como  um mecanismo de relacionar leitor e ficção, não forma de uma relação temática com o conteúdo mais na forma da própria relação intrínseca do contar. Já que esta relação entre falar/contar e ouvir é muito presente no pensamento de Dantas.

Petrola: E a biblioteca do conto também metaforiza esse ato de contar, que captura o leitor numa armadilha infinita, como um feitiço que leva a outras dimensões da vida. Nesse livro, o tecido da realidade é frágil, sempre há uma pista que nos deixa em dúvida sobre o que se passou.

Fernando: Enfim, é um livro que busca o poder da imaginação, um livro que poderia ser latino-americano, europeu, pois não existem fronteiras para ele, já pelo título são eternas. 

Petrola: A fronteira eterna é outro tipo de fronteira, que podemos ver em sua demarcação no último conto, onde a personagem (não por acaso, um imigrante) põe em dúvida o próprio chão em que pisa.

*

Trecho do conto “Fronteira eterna”:

“Agarrando o pó da terra, Monrruá viu o fim. A poeira esvaziava-se por entre os dedos feito areia de ampulheta antes de ser espalhada pelo vento.

A mãe costurava a lã para os dias frios. Às vezes, quando estrangulava as galinhas, pedia ajuda a Monrruá para depená-las na água quente. Não gostava de matar as galinhas. Preferia atirar pedras nos lagartos enquanto olhava o pai rachar a lenha.

Longos haviam sido os meses que sua família levou para chegar ali. No porão do navio, muitos morreram doentes e foram lançados ao mar. Monrruá era apenas uma criança, não sentiu as dores da viagem. Mal sabia que aquele solo nunca lhe pertenceria. A sensação era de que, a qualquer momento, alguém os expulsaria daquela terra. Se não fosse pelas mãos de outros homens, seria pela própria natureza.

Mas foi o pó, a terra seca, que não tinha cheiro nem gosto, que fez Monrruá enxergar o fim. Não entendia muita coisa e já não rezava mais à noite. Foi deixando aos poucos. Umas vezes por preguiça, outras por não querer. Mas sempre dormia perto de alguma luz por medo do escuro.

Monrruá tinha vinte e cinco anos. Aos quatorze sofreu o acidente com o machado. Por pouco não morreu. A pancada foi dura o suficiente para que suas ideias se embaralhassem para sempre. Por isso, não sabia por que motivo o céu estava sempre escuro, mas gostava das cinzas que caíam como a chuva. Os dias eram tão quentes e as explosões faziam a terra tremer. A muralha de fumaça o impedia de deixar aquele local e o que mais incomodava era o cheiro de queimado.”

Bate-bola literário – Aqui até o céu escreve ficção, de Jozias Benedicto

No bate-bola desta semana, convidei o Fernando para resenhar o novo livro de contos do Jozias Benedicto, companheiro das oficinas literárias da Estação das Letras. Neste livro, o autor se volta para as memórias de sua cidade natal, São Luiz do Maranhão.

José Petrola: O mote dos contos é a frase: “aqui até o céu mente”. Uma observação sobre o tempo instável, que, por um lado, metaforiza as convenções e contradições de uma sociedade conservadora e, por outro lado, também é uma reflexão sobre o próprio exercício de escrever ficção.  Será que o autor finge que mente ao narrar sobre a realidade?

Fernando Sousa Andrade: E o mais interessante, ele usa a cidade de São Luiz com seu tempo fechado, sujeito a chuvas, para falar como a ficção é uma espécie de mentalidade cultural sobre o viver e morar numa urbe que nada mais é que uma narrativa, com traçados, trajetos, e caminhos. 

Petrola: Gosto do conto em que ele revisita o salão de barbeiro que frequentava na juventude, escondido atrás de lojas comerciais. Um gesto de descortinar o passado e lembranças ocultas. Em outros contos também vemos um desvelamento de camadas,  mostrando as contradições entre passado e presente, indivíduos e tradições.

Fernando: A escrita parece que funciona através destas memórias, a linguagem de Jozias faz um paralelo entre o tempo físico e o tempo da memória, e assim os personagem se fazem ação perene presente. 

Petrola: Tempos que se desdobram de forma multifacetada, em personagens diversas, e momentos históricos como a ditadura militar aparecem como um pano de fundo e catalisador da ação.

Fernando: Este conto em específico fala também da relação entre filhos e mães numa espera agônica pelo afeto aprisionado na falta de liberdade e ação num governo autoritário.

Petrola: Sim, e que é uma outra faceta dessa “mentira” que permeia as relações sociais. Famílias que escondem seus filhos da repressão,  maridos que escondem relacionamentos homoafetivos fora do casamento… A mentira como um pacto social que desvela o passado e projeta um futuro distópico.

Fernando: E a relação entre a experiência que uma cidade cujo temperamento exala o perfume de seus caminhantes, pode encaixar no seu avesso ou na sua outra travessia; uma forma de exercitar a mente através da fantasia da ficção: o espaço lúdico das cidades. 

Petrola: Um espaço ao mesmo tempo lúdico e opressor, que ora remete a um passado glorioso de poetas (lembrado na recorrente menção à morte de Gonçalves Dias num naufrágio ao retornar do exílio), ora aponta para um futuro sinistro onde a espoliação do país pelas elites molda a distopia tecnológica à la “Bacurau” do conto final “2161”.

*

Trecho do conto “Ingleses nos trópicos”:

“Quando Charles chegou, cumpri o protocolo: apresentá-lo a todos, ensinar as rotinas, expor o que não consta dos manuais. Mas o mais importante, acredito eu, fui fazendo, como sempre, aos poucos: mostrar o que é esta terra, como ela funciona, bem diferente da experiência que ele teve em outros países. E se o Brasil é todo um país sui-generis, este estado, esta cidade, são mais diferentes ainda, têm características que precisamos saber para não termos problemas nem trazermos problemas para a Firma. Levei Charles para a janela do andar mais alto e apontei para o céu, o céu azul sem nuvens sobre a praia do Olho d’Água, àquela hora com a maré toda vazia descobrindo aquela enorme faixa de terra, e falei, ‘a primeira lição sobre esta cidade é que aqui até o céu mente’. Como se fosse combinado, como se eu fosse um mago com o poder de mover os astros à minha voz, em minutos as poucas nuvens se agigantaram e o céu ficou logo negro e despencou um aguaceiro; que durou se tanto uma meia-hora. Quando de novo tudo se tornou visível, a maré tinha invertido e estava enchendo, com uma velocidade impressionante; talvez o tempo de tomarmos o segundo uísque foi o tempo da praia ficar submersa pelo mar que avançava com ondas fortes, expulsando banhistas e pescadores. Charles não disse nada, mas entendeu o que o espera.”

Urubus

Abro a janela com cuidado. Sinto seu cheiro voando pelo ar. Os urubus. Faz tempo que convivo com estes rapineiros. Os pequenos corvos, crocitando suas palavras de ordem pelos becos escuros da cidade. São incômodos e barulhentos, sempre se aproximam para silenciar quem comenta os crimes do Grande Abutre. Gritam muito porque são incapazes de causar dano. Acima deles, voam os urubus carniceiros. São muitos, e voam sempre em bando. Alimentam-se dos lixões que tomaram conta da cidade. São os fiscais da cidade, a serviço do Grande Abutre. Mais silenciosos são os falcões, a tropa de elite do Grande Abutre. Aninham-se nos altos edifícios da administração pública. Voam distantes, mas nos enxergam nos mínimos detalhes. E a Harpia, de cuja existência duvidam, mas sei que também nos espreita com olhos de águia. Todos a serviço do Grande Abutre.

Sou um dos poucos sobreviventes humanos. Não sei dizer bem quando começou a invasão. Alguns dizem que foi invasão; outros, que foi uma pandemia, um estranho e novo patógeno que fez as pessoas se transformarem. Há quem jure que a transformação era transmitida até por mensagens de celular. No começo, eles não pareciam assustadores, porque eram poucos. Achávamos até um bom sinal que voltassem a aparecer mais aves no céu. Os tempos já eram estranhos. Tempos de promessas que não se cumpriam e de povo largado pelos cantos, revoltado pelas ruas. A cidade era mais próspera do que nunca, mas as pessoas andavam irritadas com uma infestação de ratos. Qualquer discussão terminava em briga.

Havia quem visse nas aves a esperança de alguma mudança. No começo, eles se faziam de justiceiros. Com seu olhar apurado, caçavam os ratos e exibiam suas caças em praça pública, para mostrar a eficiência de seu trabalho. Ganharam revoadas de fãs, os corvos, e quem se preocupasse com a invasão dos urubus era tomado por paranoico ou defensor dos ratos. E, como quem defende rato, ratinho é, começamos a nos calar.

Quando nos demos conta, a cidade estava infestada pelos carniceiros, e eles já não diferenciavam mais rato de gente. Qualquer um poderia ser atacado nas ruas. Daqui a pouco, nem mesmo os corvos estarão a salvo. Sou testemunha de que já vi alguns sendo atacados, ainda vivos.

A vida segue normalmente, mas eles estão lá. Ninguém fala deles, tentamos agir como se não existissem. Acordamos, vamos ao trabalho, aos bares, à academia, aos cinemas, enquanto os urubus nos observam, esperando o momento de nos jantarem. Quem se protege é alvo de piadas. Os urubus são espertos e pacientes, sabem controlar sua fome. Não atacam a torto e a direito, mas aos poucos, enquanto o povo está distraído olhando para os celulares. Quando deixamos de ver as mensagens e olhamos por um segundo para a vida ao redor, notamos que alguém sumiu.

Um ou outro corajoso às vezes põe a cabeça para fora da janela e grita “Urubu não!” ou “Fora Urubu!”, mas ninguém responde. Alguns têm medo. Outros acham que os inimigos do urubu querem de volta os ratos, de quem ninguém tem boas lembranças. Um dia, o muro de casa aparece pichado com a frase “Os corvos são cornos!”, e fica por isso. Andamos cansados, com medo de sair de casa, tentando nos esconder, enquanto as obrigações continuam como se nada estivesse acontecendo.

Hoje é dia de sair para as ruas. Mais uma vez, estamos todos cansados e com raiva. Pensei em fazer um cartaz com a frase da pichação, mas acho melhor sair de casa discreto. Nunca se sabe. Desconfio dos meus vizinhos. Dia desses, o vizinho da frente me confidenciou que tinha sido funcionário do governo na época da praga dos ratos. Quando se lembrava disso, falava dos roedores com tanta raiva que a sua cabeça começava a pretejar e o nariz ficava mais adunco. Seria assim que começava a metamorfose? Saí de perto antes que aparecessem penas. Nos dias de hoje, não se pode confiar em ninguém.

Escolho uma camiseta bem colorida. Dizem que as cores fortes espantam os urubus, acostumados aos tons escuros do lixão de onde vieram. Saio de casa sem dirigir o olhar a ninguém, como se estivesse indo à padaria. Olhando sempre para os cantos, receando algum corvo ou urubu escondido, vou caminhando até a avenida central.

Bate-bola literário: A teoria da felicidade, de Kátia Borges

No bate-bola dessa semana, eu e o Fernando Sousa Andrade escolhemos “A teoria da felicidade”, coletânea de crônicas que a soteropolitana Kátia Borges publicou pela Editora Patuá.

José Petrola: As crônicas desse livro parecem flashes de memória, como quando folheamos álbuns antigos ou reviramos um armário depois de muito tempo. Gosto desse olhar para lembranças pequenas da infância.

Fernando Sousa Andrade: É uma escrita  do jogo e para com  as memórias, onde não há peso para o passado, pois ele se constrói também pelo que somos hoje à partir desta lugar de fala? da escrita

Petrola: Esse olhar para o passado se constrói como um retrato de momento, que ilustra bem a “teoria da felicidade” que a autora constrói a partir da ideia budista de aceitar a inconstância do ser.

Fernando: E para isso as emoções da autora são quase uma escritura à parte que vem por trás da escrita elegante e sensível.  Katia escreve com envolvimento sobre a arte de descobrir os casos da sua biografia, e toda esta prosa vem adocicada com um café com pão de queijo.

Petrola: Um olhar clariceano de buscar coisas que não estão na superfície. Um elemento insignificante – uma canção, um animal, uma lembrança – sugere muito sobre como as pessoas buscam seus afetos.

Fernando: Talvez os textos de Katia estejam  focados naqueles momentos de uma epifania, onde um afeto ou uma palavra memória faz toda uma sensação de miudezas do cotidiano afloram na mente do leitor. 

Petrola: Gosto das crônicas em que ela rememora passagens da adolescência e juventude, com uma trilha sonora que marca a época e a Salvador onde viveu.

Fernando: A música é parte fundamental tanto de um repertório afetivo, de memórias,  quanto na construção melódica dos textos.

Petrola: E também ajuda a construir laços afetivos, que perpassam o livro todo – seja o afeto por outra pessoa ou por um animal de estimação. 

*

Trecho do livro:

“Morávamos perto da Praia do Cantagalo e eu tinha um avô português chamado Lídio. Ele era exatamente como eu: pequeno, ensimesmado e triste. Gostava de cozinhar. Pouca memória, porque foi curto o tempo. Ele me apresentou ao mar. A impressão que tive da areia molhada arranhando a pele, de que a água alcançava toda forma e, assim, nos seguia até em casa e, para sempre, presa ao corpo (Ave, Clarice!).

Frequentemente, produzo polaroides sentimentais daquilo que vejo. Da pequena casa onde morei, lembro as tintas de cores exóticas, sobras da refinaria de petróleo (Ah, Adélia!), o plástico que sustentava a chuva no inverno, a rua simples que se erguia luxuosa a cada segunda quinta-feira de janeiro. Lembro também que a vida parecia em muito com um beco estreito, o recuo de um mundo de muros que permitia a livre criação de universos.

Da memória, pequenas hortas. O brotar dos seios. Ocultar, da racionalidade, as dores que não interessam. Demolir castelos onde princesas mortas esperam príncipes encantados. E as Esperanças. Já repararam como elas somem no inverno? Amar o verão, no qual retornam, com seu viço verde, e a inutilidade da poesia. Amar com toda força Galinha Branca, a mendiga da infância, tão violenta em seu desamparo.

Amar com toda força cada um dos penduricalhos que Galinha Branca carregava em suas trouxas. Flexionar o verbo e os dedos. Amar até mesmo o improvável, aquilo que se distancia de tal modo que, na distância, fica próximo. E só então se pode tocá-lo com os olhos. Apreender o imponderável, essa concha. Dentro dela, o mar pede escuta. Compreender que toda Esperança é frágil. Nela não se toca.”

Bate-bola literário: “O que devíamos ter feito”, de Whisner Fraga

O que acho mais fascinante no gênero conto é essa capacidade de condensar em poucas linhas uma narrativa contundente, que pode conter em si toda a história de uma vida em seus subentendidos. Whisner Fraga conseguiu fazer isto em “O que devíamos ter feito”, seu mais recente livro de contos lançado pela Editora Patuá, e que dá mote ao nosso bate-bola literário desta semana.

José Petrola: Todos os contos desse livro partem de um mesmo mote, que é a frase do título: “O que devíamos ter feito?”. Há uma recorrência de situações similares, de violência ou risco iminente para pessoas em situação vulnerável, como mulheres e crianças, e inclusive recorrência de nomes e personagens.

Fernando Sousa Andrade: E aqui o autor faz um belo estudo da narrativa, ou até de sua ambivalência do conto como gênero aberto à ficção e a novela, pois há estruturas onde personagens, temas, e argumentos se interpenetram num quase mosaico de uma arquetípica fabulação sobre origens e destinos.

Petrola: Os contos (ou uma quase-novela, como você observou) são sempre atravessados por uma memória traumática, um instante decisivo que nos leva a questionar o que poderia ter sido feito para evitar a tragédia – e, aqui, temos um livro muito atual, com referências diretas ao momento da pandemia que atravessamos.

Fernando: Sim, atravessamos um momento onde o real não admite dúvidas, quando há narrativas, mas me pergunto se a linha de Whisner não seria uma fronteira sobre a filosofia,  onde os pontos nunca são fixos ou certeiros, há na vida um infinita possibilidade de devires narrativos, como pontuam até mesmo o que são ações e suas consequências. Micro olhares sobre um mesmo ponto de vista? 

Petrola: Ou seria uma ação que se repete nas mais diferentes circunstâncias, sugerindo uma infelicidade comum a todas as famílias que são infelizes à sua maneira?

Fernando: Os eventos por mais que dilacerantes possuem uma latência do acontecer, como a exposição que o pai leva a filha sabendo dos riscos da doença. A vida vivida estaria concentrada na vida por vir? 

Petrola: Há sempre algo de um desejo de viver que é surpreendido por estes acasos: por que levar a filha à exposição? Por que levar o menino para a peneira do futebol? E assim por diante. Um livro sobre os diversos futuros possíveis do pretérito.

Fernando: Fico pensando na atualidade deste livro, onde o presidente abole as possíveis vias de acesso à vida dos brasileiros. O autor parece nos dizer que a ficção embarca numa tremenda fantasia surreal sobre os destinos dos viventes de um lugar. Resta a nos a nossa própria autoria? 

Petrola: Penso que a esta provocação do título – O que devíamos ter feito? – podemos responder com a pergunta provocadora de Sartre – O que fazer com o que fizeram de nós? Um convite para a ação. Recuperar a perspectiva do olhar da criança surpreendida num mundo onde os adultos tentam esconder as tragédias que as atingem, e enfrentar a violência sem passar panos quentes.

*

Trecho do livro:

“e se tivéssemos desistido, se percebêssemos que o melhor, helena, seria a tarde em família, a intimidade evitada, o incômodo convívio dos últimos dias desmantelado por uma certa boa vontade, por uma pitada de diálogo, quem sabe?

e se tivéssemos, helena, alterado apenas um pouco nossa rotina de mostras de arte, de filmes europeus, de lançamentos de livros, de vernissages?,

só que a fascinação por kandinsky era quase inviolável, uma vaidade, essa farsa de erudições estéticas, e além da ansiedade, helena, havia a normalidade cotidiana que deveríamos reverenciar: a rotina, de forma que não encontrássemos desculpas para renunciarmos ao programa,

e, já perto do centro cultural, quanta gente, deus!, uma fila agourenta a se contorcer pelas calçadas, desiludida, atiçada por um sol intolerante, atípico, e eu incomodado com a espera, com o alvoroço, sem cogitar que o vírus poderia estar ali, rastreando um corpo e que esse hospedeiro podia ser ela, helena, a menina teoricamente vigorosa, uma criança provavelmente vista como pronta, completa, identificada inocentemente por nós como algo sólido, resistente, uma garota equipada com certa inteligência precoce, o que nos levava a tratá-la muitas vezes como adulta,

estávamos desatentos dos assuntos da infância, atravessando a passos impacientes a meia-idade, sem referência daquele estado constante de elaboração, já que não usufruíamos das benesses de alguma amizade e esses amigos que não possuíamos tampouco tinham filhos, de forma que não contávamos com a serenidade necessária para apreender o outro,

quanta gente!, repeti, e você, helena, riu de minha ansiedade, quanta gente!, você caçoou, esperando por aquele comportamento, já que os termos composição viii, expressionismo, entre outros, impregnaram nossas conversas nos últimos dias,

e se, para começar, nos privássemos da exposição? que diferença faria kandinsky em nossas experiências?, se tivéssemos reconsiderado, na semana anterior, ou na hora anterior ou no minuto anterior?, era, de fato, só porque havíamos decidido mais uma vez cumprir o nosso planejamento semanal?”

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